Pomodoro — A Experiência
Esse é um texto sobre o projeto de conclusão do segundo semestre do curso de Design Estratégico e Inovação do IED de São Paulo, e foi desenvolvido por: Hugo Vitorelo, Lucas Providelo, Rodrigo Duarte e Vinícius Santos
Cio da Terra
Nosso projeto teve início a partir da música “O Cio da Terra”, de Milton Nascimento. Após uma análise semântica da letra e melodia da música, identificamos o “caipira” como o personagem da música e, consequentemente, de nossa pesquisa.
Realizamos uma observação etnográfica em um sábado de manhã na feira livre da rua Mourato Coelho, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, na qual pudemos fazer um levantamento dos principais artefatos dos caipiras/feirantes e também identificar seus comportamentos e legitimadores. O trabalho completo pode ser conferido aqui.
Concluída essa etapa, tivemos o desafio de unir o design experimental com o design de serviços e criar uma experiência gastroafetiva com o tema "Armas para paz" dentro desse universo do caipira e feirante. A seguir será descrito todo o detalhamento desse processo, desde uma pesquisa de contexto e de análises de conflitos até a execução da experiência.
1. Contexto
Desde a primeira revolução agrícola, há mais de 10 mil anos A.C. [1], o ser humano evolui da vida nômade para uma vida em sociedade. Consequentemente, ao passar dos anos, as cidades e a tecnologia foram desenvolvidas. Cada vez mais a sociedade da cidade urbana e a sociedade rural perdem o contato entre si. Esse distanciamento acontece pelo rápido desenvolvimento em busca da “Cidade do Futuro” [2], enquanto a cidade rural, também sendo desenvolvida tecnologicamente em seu estilo de vida e assistências ao trabalho [3] não possui um estilo de vida igual ao do homem da cidade grande, que tem seus dias contados pelos segundos e seu trabalho cobrado pelo minuto.
O trabalho do “caipira” — tão pesado quanto do homem da cidade grande - em sua própria forma e estilo de vida se difere pela interação com os vizinhos e seus familiares, sejam por meio de “mutirões” ou pelas “festas religiosas” [4]. Isso é perceptível quando o homem rural passa a praticar seu ócio nas feiras urbanas, a interagir com clientes e relacionar-se com o alimento orgânico. Acreditamos que existe uma ponte clara entre o urbano e o rural através da disputa do espaço entre a feira e supermercados. Ambas são consequências do desejo do ser humano, uma atende a busca por produtos frescos locais, semanais, e de baixo preço e sua confiança pelo feirante, e a outra atende a busca por produtos rápidos, importados e de produção qualificada por sua marca.
Ambos desejos são válidos; no entanto, existe ainda um debate pelo conhecimento do outro (caso mudança de local do CEAGESP [5]).Em nossa hipótese, promovemos uma experiência gastronômica para incentivar a conversa e o debate entre esses dois opostos a fim de reconhecer a importância do espaço a ser preservado pelo outro e a não ser desmantelado para benefício único.
2. Concept Book
Ainda como parte do estudo conceitual, realizamos uma pesquisa sobre significados e contextos das palavras 'armas' e 'paz' e filosofia da estética a fim de relacioná-los com o ambiente da feira e identificar possíveis conflitos.
Valores estéticos
- Jocosidades (artes do dizer) dos feirantes;
- Performances para atrair clientes;
- Espaço da feira (barulho, clientes, barracas);
- Contato com o alimento (toque, paladar, olfato);
- Contato com alimentos selecionados;
- Espaço do mercado (clientes, funcionários, marcas);
- Contato com marcas e produtos importados.
Valores simbólicos
- Visita semanal à feira
- Ida mensal ao mercado
- Produção local
- Produção nacional
Valores funcionais
- Mercado de trocas - dinheiro das áreas rurais vão para o urbano e vice versa;
- Sustento de famílias fora da área urbana;
- Eficiência de compra;
- Conhecer novos sabores
3. O conflito
Nossa pesquisa nos levou a identificar esse conflito do espaço e da percepção do tempo que ocorre entre as figuras do morador rural e urbano, o que implica, na maioria das vezes, em um julgamento e preconceito da rotina e história do outro.
Então, nossa pergunta central foi pensar como podemos trazer para esse contexto a visibilidade e a percepção da realidade do outro por meio da relação de empatia gerada por uma experiência compartilhada?
Nossa arma
Realizar uma experiência de jantar no qual uma pessoa do campo e outra da cidade possam conversar e debater, utilizando da empatia para gerar um maior conhecimento das diferentes percepções de tempo e espaço entre a vida rural e urbana.
Não existe um certo ou errado, melhor ou pior. Nosso objetivo não é “acabar” com um conflito existente, mas propiciar uma oportunidade de autorreflexão sobre a própria maneira de viver, rotinas e comportamento.
4. Personagens
Dividimos as personas para nossa experiência em dois opostos que chamamos de "Feira Lover" e "Gourmet Lover".
O primeiro, "Feira Lover", é a pessoa que faz compras semanalmente na feira, frequenta pequenos mercados do bairro, prefere o tomate sempre fresco e busca criar um relacionamento com o vendedor/feirante por confiar nele.
O "Gourmet Lover" é o oposto. Faz compras mensalmente em grandes supermercados e empórios, prefere um molho de tomate pronto e/ou importado e tem sua confiança depositada em uma marca.
5. Jornada da Experiência
Em tempos de pandemia, a experiência gastroafetiva foi desenhada para ser realizada de maneira virtual entre os participantes. Abaixo, um infográfico elaborado para ilustrar como será a jornada dessa experiência dividida em etapas.
Para auxiliar ainda mais no desenho e elaboração da experiência, construímos um service blueprint para planejar o front-end e back-end da jornada. A partir dele, pudemos detalhar as ações e pontos de contato nos diferentes momentos do início ao fim, mapeando as emoções dos participantes, pontos altos e obstáculos e indicadores de desempenho.
6. Prototipação
Gameficação
O ponto alto de nossa experiência é o jogo que ocorre durante o jantar entre o "Feira Lover" e o "Gourmet Lover", no qual eles devem tomar decisões em conjunto para realizar um almoço de família e essas escolhas definirão o prato que eles ganharão ao final da experiência.
Na primeira versão do jogo, os participantes teriam que seguir um caminho de acordo com as situações apresentadas e apenas no final saberiam o que ganharam. No entanto, o jogo se tornou muito voltado a protagonizar a feira como “o caminho certo”, enquanto o supermercado se tornava um inimigo. Para ver o fluxo detalhado, clique aqui.
Na segunda versão, alteramos algumas cartas e caminhos para tornar o processo mais justo sem existir um certo ou errado e o final sendo aceitável em todos os casos. No entanto, após um teste de role play onde testamos o jogo no lugar dos participantes, percebemos problemas durante debates que poderiam se tornar infinitos e sem uma forma concreta de jornada. Para ver o fluxo detalhado, clique aqui.
Assim, partimos para a versão escolhida e que foi simplificada em três etapas: molho, tempero e massa. O enredo foi mantido o mesmo, com as cartas apresentado situações para o debate entre os participantes definirem o caminho a ser seguido e cabe ao mediador conduzir a dinâmica e responder e/ou improvisar de acordo com as situações que o debate poderá levar.
Para trazer o conflito do tempo para o jogo, os participantes terão um tempo definido para entrar em um consenso de qual caminho desejam seguir. Se chegarem à uma decisão dentro do tempo, recebem uma recompensa a cada etapa. Porém, se passar o tempo, não ganham nada. Desse modo, não existe um caminho certo ou errado, sendo o mais importante apenas que eles cheguem em um acordo para a decisão.
As cartas e dinâmica do jogo foram desenvolvidas utilizando o Figma e você pode conferir e testar o jogo clicando aqui.
Embalagem + Entrega + Recebimento
Conforme nossa jornada, tivemos também que preparar toda a forma a comida seria enviada para os participantes. Foram levados em consideração os seguintes parâmetros:
- Deve conter 5 recipientes, cada um contém os alimentos;
- Deve conter um pano para que o participante possa colocar as comidas;
- Deve estar dentro algum compartimento para ser levado;
- Deve ser entregue de alguma forma para o participante.
Como primeiro protótipo, pegamos embalagens estilo tupperware para termos expectativa das dimensões a ser colocado dentro do compartimento para transporte.
No entanto, na caixa que encontramos não caberiam todas as embalagens e, devido a fase roxa da pandemia na cidade de São Paulo, não conseguimos encomendar outro tipo de caixa que chegasse a tempo ou pesquisar presencialmente em papelarias ou lojas de embalagens.
Seguimos então para um segundo plano de buscar algo mais característico das feiras, sacolas reutilizáveis e o padrão xadrez. Decidimos utilizar a toalha que iria dentro da caixa para embrulhar os recipientes de comida. A partir do protótipo, nos despertou a preocupação do transporte para não danificar as embalagens. Desse modo, decidimos então por entregar pessoalmente ao invés de contratar alguma empresa de delivery para o serviço.
Por final, as embalagens seriam entregues com um papel kraft e enumeradas, para criar um suspense de seu conteúdo. Criamos três versões de logo para a nossa experiência e a selecionada foi a terceira opção. No final, alteramos sua cor para a mesma cor da toalha que seria utilizada como embrulho.
7. A Experiência
Convite
Criamos um convite para a experiência que foi enviado para os convidados por Whatsapp. Nele, a frase "não tenha pressa, mas também não perca tempo" tem o objetivo de criar um suspense para a experiência e remete ao conflito de diferente percepção de tempo entre o rural e o urbano.
Preparação da Comida
Nhoque
Feito de forma caseira com ingredientes naturais que são comprados tanto no mercado como na feira, algo fácil e simples de se fazer para preparar um prato (e também vegano), que é comumente já feito artesanalmente.
Batatas + Farinha + Sal
Molho de Tomate
Comprado do mercado, de uma marca conhecida pela sua qualidade e que vem dentro de uma garrafa de vidro. (Pedaços de tomate incluso)
Sal + Pimenta + Alho em pó
Temperos
Totalmente frescos, colhidos no dia de uma horta caseira.
Orégano + Manjericão + Tomilho + Sálvia
A comida é então embalada em recipientes e envolvidas por um papel kraft para esconder seu conteúdo. Cada embalagem é sinalizada por uma letra que corresponde a itens do jogo.
A embalagem foi entregue pessoalmente para os participantes (levando em consideração a segurança no período de COVID-19). Em seguida, enviamos o link para entrar na chamada e assim a experiência teve início.
Interação
No início, fizemos uma breve introdução sobre como seria a condução da experiência e o jogo que definiria o prato que eles receberiam no final. Neste momento, fizeram a abertura do embrulho e ficaram surpresos e curiosos pelo número de pacotes e por estarem fechados, criando um suspense.
Durante o jogo, foi apresentado o cenário hipotético para preparação de um almoço em família às pressas e precisariam decidir quais ingredientes seriam utilizados e aonde seriam comprados. Lembrando que eles deveriam tomar uma decisão em conjunto e dentro do tempo de dois minutos.
Durante a interação, tivemos momentos de conversa e debates muito interessantes entre os participantes. Para a escolha do molho de tomate, o "Feira Lover" indagou que prefere um molho de tomate caseiro que aprendeu a fazer com a sua avó e que o preparo leva aproximadamente duas horas. Essa informação deixou o outro participante em choque pelo tempo pois ele sempre preferiu comprar um molho pronto.
Em outro momento, foi discutido o espaço da feira versus mercado. Por um lado, foi apontada a feira como um local que traz a possibilidade de amizade mais próxima com o feirante e produtos mais frescos. Do outro lado, uma amizade mais superficial com o caixa do mercado e uma variedade maior de produtos e opções já prontas para encontrar tudo que deseja em apenas um lugar. Ao ser falado também que na feira você não perde tempo na fila do caixa, gerou um interesse ao "Gourmet Lover" como oportunidade de economia de tempo.
Ao término do jogo, puderam abrir os pacotes, descobrir o que estava em cada recipiente e fazer a montagem do prato final. Os participantes chegaram em um consenso para todas as tomadas de decisão e ganharam as caixas A, B e C, sendo respectivamente, o molho de tomate, temperos e o nhoque. A música "Cio da Terra" foi colocada como fundo durante a refeição e mais algumas provocações de experiências na feira e mercado foram feitas durante a conversa final de fechamento.
Para assistir a experiência completa, clique aqui.
8. Resultado e considerações finais
Como especificado nos conflitos, não tínhamos o objetivo de transformar a feira ou o mercado em vilões, mas criar um espaço de conversa sobre esses dois opostos. E consideramos que pudemos atingir essa nossa expectativa.
Tivemos etapas que o “Gourmet Lover” concordou ir à feira e outra que o “Feira Lover” concordou ir ao mercado, evidenciando a percepção de valor que cada um identificou nos argumentos ou tipo de rotina e costumes.
As discussões acerca do tempo de preparo do molho de tomate, até então uma realidade desconhecida para o urbano que participou da experiência, foi um exemplo de percepção adquirida do seu oposto. Outro fator percebido, que remete ao ethos do caipira estudado no início do projeto, foi o comentário sobre a tradição de receita que passa por gerações da família do rural.
Quando questionados ao final da experiência se teriam tomado alguma decisão diferente, a resposta de ambos foi negativa. Este é um indício que as cartas poderiam ter sido elaboradas de maneira mais provocativa que gerasse mais debates e argumentos profundos, assim como mais etapas para discussão e que ao final da experiência pudesse gerar algum desconforto no resultado obtido.
Por fim, tivemos aprendizados da condução da experiência que poderiam ter sido melhor elaborados, como a apresentação inicial e um fechamento da experiência com fatos e dados sobre os conflitos. a fim dos participantes terminarem mais impactados com a reflexão.
Referências:
[1] Revolução Agrícola Wikipédia — Data de acesso 2021 — https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_neol%C3%ADtica
[2] VEDANA, Viviane. Fazer a Feira. Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Brasil. Porto Alegre, janeiro, 2014
[3]JUDAS DE CAMPOS, Tadeu. A educação do caipira: sua origem e formação. Instituto Básico de Humanidades da Universidade de Taubaté (UNITAU) — Brasil. Campinas, jan./jun., 2011
[4] VICTAL, Jane. Territorialidades Caipiras: o ser e a identidade do lugar. Iluminuras, Porto Alegre, — Porto Alegue, jan/jun 2016
[5] Continua a novela da mudança da Ceagesp — Data de acesso 2021 — https://www.gazetadepinheiros.com.br/2020/01/31/continua-a-novela-da-mudanca-da-ceagesp/